28.2.10

Mário Cravo Jr.



Mário Cravo Jr, entrevista a Ariovaldo Matos



publicada na Revista VIVERBAHIA
edição 47, julho a setembro de 1979






Em quinze das muitas rótulas do bairro Costa Verde, em Piatã, (a poucos minutos das praias de Itapuã), encontra-se, desde algumas semanas, esculturas de Mário Cravo Jr., baiano de Salvador, com 55 anos, que tem trabalhos expostos em várias cidades do mundo. Ao que se sabe, não há exemplo de algo semelhante em qualquer parte dos países ocidentais. Existem exposições abertas maiores (o Parque de Catacumbas, no Rio, por exemplo) mas se tratam de mostras coletivas. No Costa Verde se trata de um só criador e outra peculiaridade dessa exposição, de alto nível artístico, consiste em que Cravo Jr. renovará os trabalhos, de acordo com períodos que ainda não estabeleceu.

Num bate-papo com Ariovaldo Matos, Mário Cravo respondeu a numerosas indagações para os leitores de "Viverbahia".

Ari - Antigamente, Mário, essas exposições ao ar livre eram puramente estátuas. Uma aqui, outra lá... Não é isso?

Mário - É. Eram feitas para homenagear personagens, eram generais, estadistas, grandes vultos, gentes de notoriedade, digamos, política e patriótica. A escultura contemporânea veio trazer um envolvimento mais independente, de certa forma, fugindo a essa espécie de subordinação. E daí surge essa inquietação do público que, de modo geral, quando vê uma escultura livre se pergunta: "que é que significa?". Porque o público está sempre relacionando uma escultura livre com uma forma descritiva, literária, de personagem ou personagens. E isso é quase um reflexo histórico.

Ari - O que pretende a escultura contemporânea?

Mário - Pretende uma ambientação paisagística, compreendeu? É uma comunhão com a natureza, com a topografia, com o homem a pé ou andando de carro. Esse é que é o problema, é como uma escultura a respirar à luz do sol, quando as pessoas podem "curtir" uma escultura como "curte" uma árvore, uma paisagem amena, ou um jardim. Essa é a intenção social, digamos, e humana e escultural, dentro de minha maneira de pensar.

Ari - Sua primeira exposição ocorreu quando?

Mário - A primeira individual, deixe eu me lembrar... Em 1945, 44, por aí, no Oceania.

Ari - Você disse, no início da nossa conversa, que começou cedo a trabalhar em escultura, aos 17 ou 18 anos. Nessa época você também pintava?

Mário - Eu ainda pinto, de vez em quando, mas não quadros de cavalete. Desenho permanentemente, faço gravuras, mas pintar, não.

Ari - Aquela exposição sua que deu uma bronca danada, aquela na qual você mostrou um Cristo sexuado, o sexo bem à mostra, se lembra?

Mário - Ah! essa foi na Rua Chile, em local onde hoje há um banco. Isso já é aí por volta de 1948 ou 49. Naquele período eu estava muito envolvido com experiências, estava querendo me acercar de certas formas, assim, de origens antropológicas, sociológicas, etc. Então eu fazia uma série de experiências , tentando reinterpretar um processo, digamos de miscigenação, de aculturação. Fiz experiências curiosas no sentido de ver, em termos de uma linguagem plástica, por exemplo, como você pode, dentro de um processo de especulação criadora, tentar evidenciar certas situações. Situações que, por mais incrível que pareça, são às vezes paradoxais. Por exemplo: o que representa a imagem do Cristo crucificado, aqui na Bahia, em relação a Oxalá. Por que essa veneração popular do baiano ao Senhor do Bonfim? Por que a relação da coisa popular, através do culto afro-baiano - através de Oxalá, que é um Deus da procriação, da oblação, da limpeza - com o Cristo crucificado? É paradoxal e esta é que é a realidade-tabu da questão. Me interessei pelo assunto não só porque como Caribé e outros artistas freqüentava o candomblé e observava que a maioria, também dos intelectuais de um modo geral, não tentava uma especulação que transcendesse ao puro e simples registro documental. Eu estava interessado em algo mais por trás da aparência sócio-cultural. Descobri a relação de que Oxalá, um Deus da maior importância, é cultuado numa colina. É, aliás, a única deidade africana que está sempre isolado sobre um morro. Então, como Cristo passou a ser, no Cristianismo, uma personalidade da maior importância, eu tinha de encontrar um equivalente. E como a única Igreja na Bahia que existia isolada era, é, a Igreja do Bonfim, eu comecei a juntar dados dessa natureza e a interpretar. Decidi, assim, criar um personagem que fosse, ao mesmo tempo, um Cristo crucificado, um Oxalá, um deus da procriação. Então fiz aquele Cristo...

Ari - Não foi, então, como se pensou na época, uma atitude puramente "pour épater..."

Mário - Não, absolutamente, não foi. Uma pessoa seriamente interessada nesse problema não fustiga essa minha posição. Pode ser que outros pratiquem o inverso, entende? A pura e simples curiosidade para ferir certos cânones de ordem moral ou religiosa, não, isso nunca me preocupou. A minha visão é que as vezes isso pode acontecer. Esta é outra história. A cidade é reacionária. Era, é. A Bahia é uma das cidades mais reacionárias do Brasil e isso há 20, 30 anos passados, era ainda pior. Eu fiz uma exposição, essa de que você falou, e coloquei lá um Cristo meio rebelde, em forma de cruz, com o sexo em ereção porque era um personagem fálico. A coisa curiosa e paradoxal é quando você realiza um objeto desses - que é, por sua vez, de certa maneira, uma interpretação subjetiva - há sempre opiniões malévolas. O que eu notei e noto quando se apresenta um público de vários níveis é que acontecem coisas curiosas. O homem de classe média, da pequena burguesia, vê nisso uma agressão de ordem moral e de ordem religiosa, uma espécie de grito iconoclasta. E o homem do povo só vê a simbologia com seu mecanismo africano, puramente. Então, a maioria vê ali uma forma de Exu, com seu envolvimento de coisa afro, e a burguesia cristã, não importa que cor tenha, vê a tal agressão de ordem moral. Então, quando você me faz uma pergunta dessa constata-se nela a repulsa de ordem moral que a sociedade estabelecida na época tinha a respeito de uma imagem de Cristo relacionado com uma forma também fálica.






Ari - Na época a coisa assumiu aspectos de um escândalo. Na pergunta há, ainda, ressonâncias...

Mário - Mas o fato é que a coisa não foi feita com o sentido de agredir o contexto de ordem cultural. Tanto que isso só foi notado porque eu coloquei uns desenhos ilustrativos, como sempre costumo fazer em minhas exposições. E havia, naquela exposição, além desse personagem, um desenho que chamei de Cristo Baiano. Então se passou a relacionar o desenho com a imagem e ver nessa relação uma identificação. E não havia tal identificação. Eu pus um título para chamar a atenção e não notei que se poderia chegar a conclusões arbitrárias a partir de um desenho preliminar. Mas isto não constou do catálogo, absolutamente. Isso foi descoberto pelo público de um modo geral. Estabeleceu-se uma certa celeuma, como se tivesse havido intenção de agressão moral ou religiosa.

Ari - Falemos de outras exposições. Você é pioneiro nas exposições ao ar livre?

Mário - Fiz muitas, aqui, na Bahia, exposições ao ar livre. Ali no Belvedere fiz três ou quatro e vejo que essa tentativa minha de levar esculturas ao ar livre, considerando aquela época, já começa a funcionar no Brasil. Eu agora estou terminando de entregar dois trabalhos de grande porte, como escultor brasileiro, a dois empreendimentos brasileiros desse tipo. Um é a Praça da Sé, em São Paulo, em que 14 artistas do Brasil foram convidados para, com esculturas, ambientar uma praça urbana. E, ultimamente, no fim do governo do prefeito do Rio de Janeiro, Marcos Tamoio, fui convidado, ao lado de outros escultores, para apresentarmos trabalhos para um parque de esculturas, ali na Lagoa Rodrigo de Freitas, na antiga favela da Catacumba. Então, vejo que esse esforço meu está plenamente compensado quanto àquelas intenções que tive desde o começo. As esculturas que fazia, de grande porte - no fundo, contrariando pessoas amigas, como meu próprio pai - pareciam destinadas ao insucesso. Porque, então, fazer objetos de grade porte significava, em princípio, não ter onde os colocar. É aquela coisa: antes havia apenas as estátuas de homenagens, etc. Já conversamos sobre isto.

Ari - Sabemos que você começou cedo. Já na década de 40 você realizou estudos no exterior...

Mário - Em 1946 eu fui à América, com Carlos Bastos. Éramos jovens, ainda, e eu tive a chance de trabalhar com um escultor importante, que ensinava em Nova Iorque.

Ari - Quem?

Mário - É um iugoslavo, Ivan Mestrovic. Este homem, de origem humilde, era um pastor croata. Católico, cristão, católico praticante. Muito jovem, demonstrou talento e foi um dos discípulos de Rodin, em Paris. Rodin teve três grandes discípulos que se tornaram famosos: Maillot, Camille Claudel e esse Ivan Mastrovic. Tudo no começo do século XX. Anos antes eu vira numa revista de arte algumas esculturas dele e fiquei tremendamente impressionado. Porque o trabalho dele é assim um pouco “art nouveau”, figuras mais ou menos estilizadas e eu estava, no período, muito próximo desse tipo de linguagem. Assim, também, estava com uma forte dose mística, coisa com a qual no período estive envolvido. Durante a guerra ele foi “maquis” contra as tropas de Hitler. Preso, foi posto num campo de concentração. Quando Tito assumiu a liderança, por ser um elemento de atividade política cristã, Mastrovic outra vez foi posto em cana... E em 1945, por interferência do Vaticano, afinal, ele foi levado para os Estados Unidos, país com o qual ele já transava antes, realizando esculturas de grande porte. Então, o Metropolitan, de Nova Iorque, que nunca houvera feito exposição de artista vivo, fez uma retrospectiva dele, também em 1945.

Ari - Você assistiu a exposição?

Mário - Não. Como disse fui aos Estados Unidos em 1946. Sobre a exposição vi publicada uma grande reportagem na revista “Life”, na qual se informava que ele estava ensinando na Universidade de Siracuse. Fiquei apaixonado, em parte já conhecia informações e comentários sobre a escultura dele, e me disse: “vou tentar ver se rompo aqui as barreiras desta cidade” Aí, fiz uma cartinha dizendo que estava interessado na possibilidade de estudar com ele, essa coisa. Na Universidade me responderam dizendo que o semestre estava encerrado, mas que Mestrovic tinha sob si a responsabilidade de escolha de dois alunos especiais, sob inteira responsabilidade dele. E que eu mandasse umas fotografias para ver se ele me aceitaria. Eu, então, mais do que depressa, mandei algumas fotografias sobre o que já tinha feito e tive o prazer de ser aceito. Passei com ele um semestre na Universidade. Depois, fui para Nova Iorque e passei um ano e dois meses lá, já na vida mais como profissional. Foi minha primeira grande experiência profissional no exterior.

Ari - Sua vida profissional começou com aquelas primeiras exposições feitas aqui na Bahia?

Mário - Não. Ou melhor, o profissionalismo começa quando se assume uma responsabilidade social e cultural, o que equivale a uma independência econômica e financeira. A escultura naquela época, eu sendo um jovem pretendente, não permitia que eu sobrevivesse da pura e simples linguagem artística. Tanto que os meus primeiros trabalhos aqui, que eu conseguia vender, foram retratos na maioria. Retrato do velho Suerdieck, por exemplo.

Ari - Desenho?

Mário - Não, cabeça, retrato, busto. Fiz a cabeça do velho Suerdieck, do velho Corrêa Ribeiro. Fiz a cabeça de Rui Barbosa para o Fórum. Aquilo eu fiz em 1947. Esses foram, entre poucos outros, os primeiros trabalhos realmente importantes. Já havia, em parte, o reconhecimento de minha atividade por parte do Poder Público, quando Mangabeira, como Governador, fez o Fórum Rui Barbosa. Fui, muito jovem, indicado para realizar um estudo e fiz então a cabeça do Rui que está lá, no Fórum. Mas é o tipo do trabalho remunerado que era possível fazer na época.





Ari - Com quem, realmente, você se iniciou?

Mário - Meu primeiro trabalho, realmente, de oficina foi feito com Pedro Ferreira, o último grande santeiro baiano. O segundo, com quem eu tive um contato assim maior, foi já no Rio de Janeiro. Com um escultor chamado Humberto Cozzo, que é vivo ainda. Essa exposição que eu fiz agora, ao ar livre, no Rio de Janeiro, na Praça Nossa Senhora da Paz - 70 anos de escultura, reunindo uns 50 escultores -, o Cozzo estava no meio. Foi a primeira exposição patrocinada pela Globo, se não me engano. Cozzo foi o primeiro professor que tive, o primeiro mestre digamos assim, isso por volta de 1945, 1946, antes de minha viagem à América. Antes, portanto, do meu trabalho formal com Mestrovic.

Ari - Quer dizer que a sua viagem à América foi mesmo marcante.

Mário - Ah, sim, foi marcante. Tomei contato com as formas de linguagem, de técnica, de vocabulário contemporâneos.

Ari - Nesse sentido se pode falar de influência, essa coisa...

Mário - Influência no sentido de convívio com o mecanismo mais amplo da linguagem criadora da arte contemporânea. Pude visitar museus. Pude conviver com artistas importantes de nossa época, por intermédio do relacionamento permitido pela embaixatriz Maria Martins, que é escultora, que vivia em Nova Iorque. Essa senhora tinha uma casa freqüentada por grandes nomes da pintura contemporânea, na época radicados em Nova Iorque. Marcel Duschamps, Max Ernest, enfim uma dezena de pessoas, homens expoentes, europeus que viviam em Nova Iorque.

Ari - Depois de Nova Iorque, e ainda no exterior?

Mário - Depois, a experiência maior que tive, em termos de vivência, foi um período que passei na Europa, em 1960.

Ari - Essa foi a época da Alemanha?

Mário - Não, a Alemanha foi em 1964. Em 60 eu fui com um irmão meu, o Jorge, Cravinho, e passamos meio ano percorrendo a Europa de carro, visitando museus, galerias, tentando tomar um banho... Na época estive na Bienal de Veneza, foi quando representei o Brasil nessa Bienal. Então, essa ida minha à Europa já como escultor credenciado me deu para ver um outro tipo de engrenagem, como funcionam os mecanismos nas grandes feiras internacionais de arte. Vi, portanto, um outro lado da história: a competição, a política entre as artes. isto me deu muita experiência. Isso, repito, em 1960. Em 1964 eu tive já um convite para permanecer na Alemanha, através de um programa da Fundação Ford, chamado “Artistas em Residência”. Foi um período de atividade mais estável.

Ari - Na Alemanha Ocidental?

Mário - Sim, em Berlim. Foi uma dessas coisas fantásticas que a Fundação Ford faz de vez em quando. Cerca de 26 artistas, desde críticos de arte, músicos, musicólogos, poetas, escultores, chamados a viver em Berlim Ocidental com a suporta intenção de dinamizar a vida cultural da cidade. Realizavam-se trabalhos, faziam-se exposições e não obrigava, inclusive a você permanecer lá, a não ser um terço do tempo. Você podia sair, voltar, essa coisa, ir à Alemanha Oriental, como eu fui, várias vezes. Não havia essa intenção assim de bloqueio, embora o projeto fosse patrocinado pela Ford Foundation e, naturalmente, pelo Senado de Berlim, mas nas estruturas políticas do mundo ocidental, lógico. Isso foi também uma experiência de certo modo gratificante e também, como todas elas, com seu lado doloroso, difícil. O convívio, naquela época entre as duas cidades - não sei como está agora - era muito difícil, por mil e uma razões. Mas eu tive chance de sair, de passar dois meses na Itália, um mês na Espanha. Enfim, andar pela Europa toda. De volta para cá eu passei mais seis meses na América e tive então oportunidade de fazer uma outra experiência interessante, a convite do Departamento de Estado americano. Para visitar a parte pedagógica de educação de arte em cerca de 12 escolas de belas artes. Visitei nove. As mais famosas escolas de arte da América, fazendo palestras, falando com os professores. Isso me deu uma esplêndida vivência no que concerne à parte pedagógica de ensino de arte.

Ari - Você tem obras em vários museus do mundo, não é, Mário?

Mário - Tenho, em alguns. Tenho coisas até na Rússia, em Leningrado. O Chateaubriand, por exemplo, era um homem que tinha uma experiência muito curiosa. Ele adquiria trabalhos de artistas não tão notáveis e então os doava a museus. É o que explica a minha presença no Museu de Leningrado.

Ari - A Exposição do Parque do Costa Verde, você já disse, é uma experiência singular. Você tem trabalhos em praças de países estrangeiros? Fora de Museus, é claro.

Mário - Não. Em praças, não. Eu fiz exposições ao ar livre lá fora. Em Washington, por exemplo, em 1960. E há outros casos mas em exposições cíclicas, não permanentes. O trabalho de exposição de esculturas é muito complexo pela problemática que envolve. Por exemplo, uma exposição de esculturas ao ar livre só pode ser feita através de um órgão patrocinador que tenha recursos para o investimento. Até para que você possa embalar e transportar, 5, 10, 15 toneladas. A exposição ao ar livre, que é a que mais me estimula, se dá em casos raríssimos.

Ari - Sua escultura para São Paulo, para a Praça da Sé, já está lá?

Mário - Não. Eu a executei aqui e essa escultura participa ao lado dos trabalhos de 13 outros escultores. Lá em São Paulo, deixe eu explicar, eles selecionaram 14 escultores e todos tiveram prazos de oito meses para executarem seus trabalhos, eu entre eles. Os escultores, entre outras coisas, ofereceram duas opções, duas maquetes, das quais os paulistas escolheram uma e parte deles recorreu ao processo industrial do trabalho. Eu, como transo muito com essa coisa de oficina, resolvi fazer eu mesmo minha própria escultura. Ela foi feita aqui, em meu atelier. Uma escultura de dois metros e quarenta, mais ou menos, por dois metros e vinte. Foi então contratada um empresa de São Paulo responsável pelo transporte. Vieram aqui apanhar, eu entreguei a escultura e o chofer, no limite da Bahia com Minas, dormiu no volante, caiu num despenhadeiro, matou - se não me engano - duas ou três pessoas e despedaçou a escultura. Eu estive lá, examinando, dei o meu laudo, considerando o trabalho irrecuperável e estou aguardando que solucionem a parte do seguro para refazê-lo.

Ari - E a do Rio?

Mário - Já está lá. Essa foi feita numa indústria, porque houve um tempo muito limitado. Marcos Tamoio convidou, pelo menos a nós aqui da Bahia - o Caribé e o Tati Moreno também - uns 30 dias antes da inauguração da Praça. Então eu tive de executar o trabalho já no processo industrial. Uma indústria, a Fonte Nova, colaborou e eu executei, metalizando-a também. Aliás, mandei-a de caminhão e esse caminhão também caiu na estrada, mas essa só estragou uma parte e eu consegui restaurá-la. Ela foi transportada para o local de helicóptero, uma experiência muito curiosa. Do piso da Lagoa Rodrigo de Freitas, onde há um campo de futebol, um parque lazer, agora. Daí até o local onde era a antiga favela da Catacumba. Ali foi feita uma série de passarelas, de ambientação muito agradável e foram colocadas, lá, uma vintena de esculturas. Você vê a paisagem da Lagoa, e, na frente o mar, muito interessante. Bem mais interessante que o de São Paulo. Porém, o material, qualitativamente, me parece que o de São Paulo foi melhor selecionado, talvez devido ao tempo disponível.






Ari - Essas formas que você adota elas lhe são sugeridas de que modo?

Mário - Aí a coisa começa a se complicar um pouco... Há no trabalho de artes plásticas, uma tentativa, me parece, de definir a relação entre linguagem, gramática, estilo e a constante procura das fontes de estímulo que irão caracterizar suas vária etapas. É o artista à procura do seu próprio estilo. Eu, desde cedo, tive sempre uma inquietação, de um lado com as coisas assim mais emotivas, mais imediatas, mais sensoriais ou mais sociais em termos imediatistas. Como por exemplo a fase de abordar raízes antropológicas, digamos culturais. Mas, em paralelo tinha também inquietações de caráter formal, quer dizer, como é que você põe a linguagem para fora. Como é que você descobre uma maneira que é sua. Então, veja: eu fiz centenas e centenas de Cristos crucificados. Fiz também centenas de Exus... Em determinando momento eu estava interessado - porque meus filhos eram jovenzinhos interessados em animais e insetos - na zoologia e então fiz uma piquetada de formas aladas, formas que representam a maioria das esculturas que mandei para Veneza em 1960. Mas, você pergunta: “que animal é esse?” Ou “que tipo de borboleta é esse, qual a classe, qual a família?”. Ora, o problema não é esse: uma forma alada é uma forma alada. Determinado período, já na década de 70 eu me interessei por formas vegetais, plantas, musgos, frutas que desabrocham. São essas as formas - entende? - que caracterizam uma observação relacionada com a natureza, que é o homem e que é também o objeto. Então você não diferencia bem, depois de se envolver muito com essas variáveis, até que ponto, uma forma de proteção de uma planta é uma forma de mãe, é um feto. Não há muita diferença. As pessoas é que ficam perdidas quando perdem esse elo imediatista da compreensão de uma temática. E se esquecem que a profundidade das referências está em mil e uma gradações. A maneira com que uma planta abriga o seu núcleo é uma vulva feminina, não tem diferença do ser mulher, maior ou menor. Uma planta pode ter o sensualismo das nádegas de uma mulher. Então, até que ponto se relaciona com isso, isso está ligado a um tipo de vocabulário que deveria definir estilo. Então é muito difícil a um artista que faz uma série de especulações em seu atelier, que não mostra isso sistematicamente ao público, tentar simplificar as coisas. A maioria das pessoas não pode entender e não é educada para isso. E não compete, por sua vez, ao artista, estar martelando questões assim e elas não têm condições de distribuir esses ensinamentos, essas informações a todo e qualquer indivíduo. Ainda mais um povo como o nosso, ao qual falta a informação intermediária. Então, todo ato de maior inventividade plástica se torna, aparentemente, numa coisa que até parece gratuita, “pour épater”, para escandalizar (...) Há uma tendência muito curiosa de as pessoas exigirem uma espécie de nomenclatura do objeto. É um fenômeno de ordem histórica: “o que significa?”. Pela utilização que as religiões fizeram dos artistas, que os poderosos fizeram dos artistas, como forma de documentação. Então você não pode hoje aceitar a idéia de que há uma espécie de libertação desse tipo de compromisso. As pessoas ficam até frustradas e se perguntam: “que é que ele quer dizer?”. (...) É como aquela escultura lá em baixo, defronte do Mercado Modelo, ali, na Rampa. Me perguntam: “que significa?”. Respondi: é qualquer coisa de sensual e aí interpretaram “sensual” por sexual, o que não tem nada a ver.


Fotos: Mário Cravo Neto

1.2.10

Sante Scaldaferri



Sante Scaldaferri,
entrevista a Ariovaldo Matos



publicada na revista VIVERBAHIA
edição 48, out a dez 79,






Com a mulher, Marina, e três ariscos cachorros dobermann, barulhentos mas definidos como inofensivos, "uns gatinhos", o pintor Sante Scaldaferri mora na avenida das Amendoeiras, em Itapuã. É possível que, ao ser impressa esta edição de VIVERBAHIA, Sante e família já se encontrem na Europa, que percorrem a partir de uma estada em Marrocos, na África. A casa das Amendoeiras, assim, estará entregue a familiares e/ou amigos, boa política, até para protegê-la. E o imóvel merece. É uma residência ampla, uns 400 metros construídos, e amplo é o atelier do pintor, cuja temática forte teria impressionado vivamente o escritor peruano Mário Vargas Llosa, que viu alguns trabalhos de Scaldaferri numa das salas de arte da Igreja de São Bento. E voltemos à casa que, como se diz na gíria, “ela merece”. Há uma piscina nos fundos, além da qual um terreno que Sante namora. Ali construirá, se possível, um atelier mais amplo, “porque há trabalhos - explica - que requerem maior espaço físico para que eu me movimente”. Um dos últimos trabalhos de Scaldaferri, neto de migrantes italianos, se encontra na agência do Iguatemi, do Banco do Estado da Bahia. Nas imediações da piscina, não raramente também procurada por turistas, Sante Scaldaferri fez construir “O Curral”, destacando-se, na parede maior, um mural pejado de ex-votos, carrancas, utensílios variados. É o “Mural de Chico Velho”. Nele a força de um artista plástico impregnado de misticismo e de profunda fé na capacidade criativa do homem nordestino. O que ele tem de coragem e medo, de aceitação e de revolta - e sempre a presença da esperança. Nos olhos e nos estandartes. Nos gestos e nas bocas. A beleza é áspera, mas não agride. O que Sante faz se move e nos imprime sua marca. A sua conversa com o jornalista Ariovaldo Matos:


uma cultura dura e fértil





A.M - Como você se definiria como pintor?

Sante - Realizo meu ofício, mas não gosto de rotular meu trabalho. E é trabalho que faço com amor. Desde criança queria ser pintor e consegui isso sem violentar uma convicção também antiga: só entendo arte aquela que emana do povo e que, para usar uma formulação de Jorge Amado, ao povo é devolvida.

A.M - De que modo você consegue se apropriar dos temas disso resultantes?

Sante - Basicamente, o inicio do meu processo criativo se dá no contato íntimo com as raízes fundamentais da cultura popular. Tento absorver, e não é fácil, uma cultura dura e fértil como um caroço que se faz semente.

A.M - Essa concepção de busca, digamos assim, leva você a recusar “escolas”, etc, essa coisa toda?

Sante - Me leva a ter espírito aberto. Não atendo a modismos, se é isso que você quer sugerir. Eu continuo acreditando, a menos que alguém me convença do contrário, que, por vezes, uma simples colher de pau do artesanato popular tem mais força, poder, do que certos esoterismos.

A.M - Isso significa desapreço ou pouca importância a coisas teóricas?

Sante - Não me entenda mal. O que afirmo, sempre afirmei, é que meu trabalho é fruto de um grande acúmulo de conhecimentos teóricos e de muita vivência pessoal nas fontes do povo do Nordeste. Isso não significa, é claro, desapreço, ou o que seja, a teorias. As coisas caminham juntas. Daí porque viajo muito. Me meto no carro com Marina, sempre que podemos, e saímos por aí, às vezes com programas determinados, às vezes em busca do que o acaso ofereça. E sempre oferece. Aqui, no Nordeste, por exemplo, a arte está presente em todo um artesanato incrivelmente rico no conteúdo e na forma.

A.M - Ia fazer uma pergunta sobre sua viagem à África e à Europa, mas amplie essa resposta. Sobre a riqueza, no conteúdo e forma...

Sante - Riqueza nordestina em termos de artesanato? Claro que é imensa. Ela está presente numa simples colher de pau, nos fifós, nas urupembas, nas formas e desenhos da cerâmica, nas roupas e apetrechos de couro, nos objetos de madeira. Você mesmo, em um conto, se referiu a um porrão e os desenhos neles contidos. Você poderia ter-se referido a qualquer outro recipiente de água, aplicável na sua história, mas você é baiano, você não esqueceu o porrão. O ilustrador do conto, Lage, também usou o porrão, quando poderia mostrar os dois personagens na praia, ou no bar, ou mostrar o rosto da mulher. Entendeu? A coisa fica no subconsciente ou lá como se chame e a gente tem que ir lá no fundo. Isso é importantíssimo. Não é por acaso, assim, que no processo de recriação esforço-me e procuro transpor para a minha pintura tudo o que diz respeito à arte popular do Nordeste.


minhas figuras são gente





A.M - Você sabe que Mário Vargas Llosa ao visitar a exposição permanente do Mosteiro de São Bento elogiou bastante os trabalhos que você tem lá?

Sante - Soube. Um amigo comum me transmitiu a impressão dele. Ainda não conheço, porém, esse escritor tão respeitado. Espero ter oportunidade de estar com ele, antes da minha viagem. Gostaria de ouvir as opiniões que já tenha sobre o Nordeste e, especificamente, a região de Canudos.

A.M - Como você definiria sua pintura, hoje?

Sante - Acima das injunções partidárias, às quais não me submeto, meu trabalho é, no mínimo, a minha contribuição para a melhoria das condições de vida do povo do Nordeste e, numa forma mais ampla, do Brasil e do terceiro mundo que hoje se acham experimentando importantíssimas transformações que vejo como favoráveis a todos os povos. Assim é porque, numa forma mais ampla, o interesse maior de minha pintura é o homem.

A.M - Mas a impressão que se tem...

Sante - Imagino o que você vai dizer. E repito, e tenho repetido isso em várias entrevistas, ou onde quer que a discussão surja, que o interesse maior de minha pintura é o homem e que este homem, muitas vezes, está representado pelo ex-voto. Não é a impressão que você ia transmitir?

A.M - Pelo menos nos trabalhos seus que tenho visto...

Sante - Mas, repare bem, não se trata de simples transposição, não o ex-voto simplesmente jogado na tela. Minha pintura, volto a insistir nisso, é a da gente com cara de ex-voto e não ex-voto com cara de gente. E a gente nordestina. Esta é a segunda grande preocupação: o povo do Nordeste. Aliás, é esse povo com uma capacidade de viver e de lutar que não impressiona apenas aos que trabalham, nas artes plásticas, nessa linha. E sim também inspira, usemos esta palavra, inspira grandes escritores brasileiros. O que é o romance Vila Real, de João Ubaldo Ribeiro, senão a identificação do sofrimento e da luta e o elogio da esperança do povo do Nordeste? O livro, seja qualquer livro, eo quadro, seja qualquer quadro, desde que bons, com suas singularidades particulares e gerais, valem pelo todo e pelo que têm de específico. Você lê de um jato não? Porque prende. Mas, você, depois da leitura, tem necessidade de reler certas partes. Ou não é? Certas partes de uma beleza incrível. Mas é o que se dá com um quadro. Não basta olhar, é preciso ver. E ver sem preconceitos, sem apriorismos.

A.M - Essa sua preocupação com o homem nordestino não o limita no sentido de um regionalismo exacerbado? Não que haja esse regionalismo em “Vila Real”, é claro. Livros à parte, fiquemos em pintura. O tema o limita?

Sante - Não, muito ao contrário.

A.M - Explique,

Sante - A arte e sua linguagem são universais e este não é um problema simples. Vou tentar ser mais conciso. A missão do artista é muito ampla e diversificada. Não poderia deixar de ser, aliás, uma vez que a arte é uma virtude do espírito do homem. Os homens do mundo todo, que têm aspirações comuns, embora as manifestem de diferentes formas. O conteúdo nacional da arte, se efetivamente nacional no sentido de ser determinado por suas raízes populares, ganha uma significação internacional. A busca dessas raízes, sua identificação, seu estudo, têm uma importância essencial. É o que explica, me deixe voltar a argumentar com livros, o êxito internacional de Jorge Amado, apesar das diferenças de idiomas. O que é efetivamente popular projeta-se mundialmente. E não só o popular de origem rural. Assim, portanto, quanto mais nacional uma arte mais internacional ele é, em termos de resultados. Uma pessoa não precisa saber sobre a guerra civil espanhola, aquela coisa terrível, um milhão de mortos, para entender “Guernica”, de Picasso. Acontece, no entanto, que se essa pessoa souber sobre Guernica, o que aconteceu e porque aconteceu ali, o entendimento do trabalho de Picasso será muito mais rico.

A.M - Não é tão difícil de entender. Veja Villa-Lobos na música.

Sante - O exemplo é ótimo e vejo que você me arrasta de novo para área não livre... Tá bom. Veja Villa-Lobos e pessoas amigas minhas, que entendem de música, me asseguram que quem melhor cantou, até hoje, a quinta Bachiana, um negócio genial, brasileiro de fora a fora, foi uma norte-americana, Joan Baez, embora se fale muito numa interpretação de Elizete Cardoso.

A.M - É, mas não há o disco. Ou, se há, é fantasma.

Sante - O de Joan Baez existe. É a tal coisa: as grandes emoções não têm pátria, salvo no sentido de que formalmente se expressam de diferentes maneiras. Mas, a nível de apropriação têm pátria. É aqui que arte e ciência caminham juntas. Mas volto à questão que você colocou. Cada emoção requer, para ganhar universalidade, a mais autêntica tinta nacional. Ou prevaleceria o cosmopolitismo anódino, inconseqüente. É aqui que a forma ganha um significado especialíssimo, de primeiro plano.


Importância e limites do figurativismo



A.M - Você disse, no começo deste papo, que desde criança aspirava ser pintor. Vamos falar sobre isso?

Sante - Não se trata de uma coisa inata, aliás, não sei se existem, de um modo socialmente típico, as tais coisas inatas. Isso me cheira mal. E pode levar a conceitos desumanos sobre “povos superiores”, “povos inferiores”, “raça” isso, “raça” aquilo. Penso que você concorda comigo. Acontece que fui criado de um modo e num ambiente em que minhas tendências, vindas não sei de onde, encontraram oportunidade de ganhar estímulos. Inclusive estímulos materiais, concretos. Eu não precisava sair por aí, como criança pobre, e isso você vê muito, desenhando com lápis, carvão, qualquer coisa, nas paredes. Você ainda vê meninos desenhando balões, arraias (que não devem ser confundidas com as “pipas” lá do Sul), casinhas, essa coisa toda. De sorte que não precisei de paredes. Tinha papel, lápis, o que quisesse. E tinha o colégio, não é?

A.M - Você chegou a freqüentar a Escola de Belas Artes?

Sante - Freqüentei. Em 1957, ano em que terminei meu aprendizado lá, é que comecei, realmente, a minha pintura em forma criativa e profissional.

A.M - A Escola ajudou?

Sante - Ajudou muito, inclusive ensejando o convívio com professores e estudantes extremamente capazes e talentosos. Não é o caso de citar nomes, aquela história das omissões involuntárias. Mas, a Escola ajudou muito.

A.M - Pode-se dizer que é menos razoável o ensino de artes plásticas no Brasil?

Sante - Não se pode dizer isto. De modo geral o ensino de arte no Brasil é muito ruim, a julgar pelo que tenho lido e de acordo com opiniões que tenho ouvido. Acredito que as Escolas de Belas Artes - aliás, eu não gosto dessa coisa “belas artes” ... - são um aspecto do momento crítico em que vive a Universidade brasileira.

A.M - A crise é mundial. Faz alguns meses o Milton Santos deu à “A Tarde” uma excelente entrevista sobre isso.

Sante - Me falaram, mas não li. Devia estar viajando. No caso da Universidade brasileira, a crise que atinge as Escolas de Belas Artes, e esta é a minha transa, chega a ser dramática. Ou, pelo menos, tem aspectos dramáticos. Mas, tenho para mim que, no final das contas, toda escola tem pontos bastante positivos e é preciso valorizá-los adequadamente. Essa coisa de “fechar para balanço” é muito radical e com certeza não leva a nada. Os radicais são uns chatos.

A.M - Uma das conclusões que se pode chegar a partir da análise feita por Milton Santos é a de que a crise universitária é parte de uma crise geral.

Sante - Sem nenhuma dúvida, mas essa crise, as discussões em torno dela, já não se limitam aos gabinetes dos tecnocratas. É à luz do sol que, agora, as questões são debatidas e presentemente está em curso um processo de se repensar a Universidade brasileira como um todo e acredito que os resultados favorecerão, também, as Escolas de Belas Artes.

A.M - Falar em “à luz do sol”, você foi aporrinhado pela censura, alguma vez? Houve aquele caso de Minas Gerais...

Sante - A verdade é que a censura jamais interveio em meu trabalho e se houvesse eu teria botado a boca no mundo, como se diz. Aliás, vivemos um momento de redemocratização do país e isso parece assegurar que a censura, de um modo geral, se tornará menos burra e que a autocensura tende a desaparecer ou a ser minimizada. A autocensura a partir de condicionamentos políticos, quero dizer. Porque há pessoas que, no ofício das artes plásticas, se autocensuram, se autolimitam pensando na censura que existe em função das exigências do mercado comprador. Ou da parte dele que exige coisas bonitinhas, engraçadinhas, pitorescas, essa papagaiada toda. Você não ignora isso.

A.M - Pelo que me recordo você teve uma fase abstracionista. Por que?

Sante - De 1957 a 1960, por aí, no seu modo exterior, minha pintura apresentava três características principais: pesquisa da matéria, simplificação da forma e bidimensionalidade. Daí para o abstracionismo foi um passo. A pesquisa da matéria e a bidimensionalidade permaneceram. A simplificação da forma transformou-se em forma abstrata pura.

A.M - Um certo elitismo?

Sante - Não, creio que não. A forma exterior dos trabalhos deste período não representava o produto elitizado do que se convencionou chamar de “fatores existenciais”. na sua forma aerofotogramétrica, ela guardava coerência com meus conceitos teóricos, em parte forjados na Escola de Belas Artes, quanto à arte, no sentido da linguagem, ser a expressão de uma atmosfera nordestina.

A.M - Excursionando ainda, de quando em quando, no uso do abstracionismo, a exemplo do seu trabalho na agência do Baneb-Iguatemi, pode-se dizer que, em essência, você se voltou para o figurativismo?

Sante - Não se trata bem de uma excursão episódica, como pode parecer, mas não seria o caso de a gente debater isso. Ou seria?

A.M - A pergunta é: você se voltou, basicamente, para o figurativismo?

Sante - Felizmente não tenho, absolutamente, do que me arrepender. É bem ao contrário. Mas se trata, note bem, de um figurativismo mais consciente, mais elaborado, mais popular, com um desenganado e claríssimo empenho de denúncia e recusando qualquer tipo de alienação.

A.M - O que o faz voltar-se assim para o figurativismo?

Sante - Essa volta, esse retorno, deu-se por uma série de fatores. Eu passei a querer, com paixão, gentes, bichos, coisas nas minhas telas. Além da insatisfação pessoal, considerando as telas, ao verificar que a fase abstracionista não atendia à contribuição a que me propus, também verifiquei, como outros verificaram (disso, aliás, na época eu não tinha conhecimento), que aquela linguagem era inacessível às massas. Não tinha, a rigor, a seriedade que marca tantas realizações abstratas exigentes do maior respeito. Não se tratava e nem se trata, de elitismo, que é outra história, e sim se tratava de que eu e outros, antes, estávamos macaqueando formas, teorias e conceitos que nada tinham a ver com o povo brasileiro e, em conseqüência, não dispúnhamos de uma linguagem nacional de valor universal. Isso precisa ficar muito claro: fazíamos macaqueações. Como muitos escritores, e não só romancistas e contistas, ficam macaqueando o que vem lá de fora. Então, revi as posições que antes havia adotado e isso aconteceu em 1964. Mas, de outra parte, suponho que não é justo, não é real, não é verdadeiro, confundir elitismo, que também condeno, com macaqueações. Se tomarmos a literatura, para efeito de comparação, você não diria que Proust, com o elitismo dele, tenha macaqueado quem quer que seja...

A.M - Botando Proust de lado, ele não é o caso, lembro de você ter dito que suas figuras são gente com cara de ex-voto e não o contrário. Bem. Isto garante a universalidade de sua pintura?

Sante - Creio que sim, embora universalidade, aí, deve ser encarada com a necessária humildade artística. Como disse antes, este não é um problema simples. A pintura, para ser válida, tem de ter, necessariamente, uma linguagem universal. No meu entender existe uma pintura com temática brasileira, entre outras a minha. Mas, se considerarmos toda essa rica temática e a estudarmos em profundidade, veremos que só as formas exteriores, a ambiência, são brasileiras. Por exemplo: as origens dos ex-votos, das pinturas votivas, são universais, provindas do cristianismo. Existem em vários países e foram transpostas para o Brasil durante a colonização. É o que antes disse: o que dá caráter nacional a qualquer tipo de arte são os acréscimos específicos das peculiaridades de cada povo, de cada nação. Esses acréscimos, quantitativos e qualitativos, têm suas fontes nas raízes da cultura popular. A rigor, o que existe de mais puro e autenticamente brasileiro é a arte indígena, feita antes do descobrimento, principalmente a arte dos índios marajoaras.

A.M - Outro tema: como você se comporta diante da pintura mural?

Sante - Trata-se, no caso, de compor de acordo com a arquitetura, buscando-se perfeita integração do mural em si com a arquitetura ambiente e nesse caso tanto pode ser figurativo quanto abstrato. O importante é não haver discrepância entre o mural e o espaço a que vai integrar, tanto o interno quanto o externo. Como a pintura de cavalete, o entalhe, o alto relevo, etc... o mural tem características próprias como também suas técnicas. caso não sejam aplicadas, cai-se , inevitavelmente, no ilustrativo ou no anedótico. Naturalmente, existem o casos especiais e penso no espaço arquitetônico em que caibam quadros de grandes dimensões, painéis formados por diversos quadros, trípticos, etc. Como também a obra monumental a dividir o espaço arquitetônico. O mural, portanto, é um tipo de pintura com características próprias.

A.M - A Bahia é rica sob esse aspecto?

Sante - Começa a tornar-se. Por ser de custos elevados, somente o poder público e algumas empresas têm permitido, em Salvador, a execução de obras de arte monumentais e deve ser registrado que o interesse dos governos por obras de arte é cada vez maior. Haja vista as recentes iniciativas dos governos municipais do Rio e de São Paulo, colocando esculturas em praças públicas. Ou, igualmente da maior importância, as iniciativas do Governo ACM em mandar colocar obras de arte monumentais nos edifícios do Centro Administrativo. Existe, em Salvador, uma lei já aprovada pela Câmara de Vereadores, determinando que em cada edifício a ser construído, tenha, obrigatoriamente uma obra de arte. Esta lei, contudo, nunca entrou em vigor, de modo sistemático, por falta de regulamentação. Aí é que reside todo o problema?

A.M - Por que?

Sante - É que uma regulamentação mal feita seria catastrófica para a cidade. Entendo que a lei, em si, é uma faca de dois gumes, excelente quando abre um novo mercado de trabalho, mas, por outro lado, estaríamos sob perigo de maior poluição visual. Mas, não se trata de uma dificuldade insolúvel, desde que, repito, haja uma boa regulamentação.

A.M - Onde, exatamente, as dificuldades?

Sante - É que são necessários critérios estéticos e técnicos que, ao menos, minimizem as contrafações. Um grupo de trabalho que reunisse artistas, economistas, pessoas de reconhecido bom gosto, etc., poderia começar a trabalhar nessa regulamentação, cuidando de não impedir o acesso de jovens talentosos, sérios, etc. Ou então triunfariam as “panelinhas”, o que não aproveitaria a ninguém e prejudicaria enormemente a cidade.


Biografia

Sante Scaldaferri




Natural de Salvador, onde nasceu em 1928, Sante Scaldaferri, é pintor, gravador, tapeceiro, ator, cenógrafo, professor. Em 1957 formou-se em pintura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia - UFBA. Na mesma instituição estudou a técnica de encáustica com Rescála (1910 - 1986) e fez curso livre de gravura com Mario Cravo Júnior (1923). Scaldaferri foi responsável pela implantação, em Salvador, dos centros de formação artesanal do Serviço Social do Comércio - Sesc, do Serviço Social da Indústria - Sesi e da Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia. Em meados da década de 1950 atuou como cenógrafo em produções relacionadas ao cinema novo e como ator em filmes de Glauber Rocha (1939 - 1981). No início de sua trajetória artística realizaou retratos e pinturas de temática social. Entre 1960 e 1964, foi assistente artístico da arquiteta Lina Bo Bardi (1914 - 1992) e professor da Escola da Criança do Museu de Arte da Moderna da Bahia - MAM/BA. O artista criou também vários painéis para espaços públicos localizados principalmente em Salvador. Publicou, em 1997, o livro Os Primórdios da Arte Moderna na Bahia, pela Fundação Casa de Jorge Amado. Em 2000 foi realizado o vídeo Sante Scaldaferri - A Dramaturgia dos Sertões, com fotografia de Mario Cravo Neto (1947) e direção de Walter Lima, e, em 2001, o vídeo Sante Scaldaferri: Erudito e Popular, com direção de Maria Ester Rabello. Em 2003 foi lançado o livro Sante Scaldaferri: Desenhos, pela Fundação Casa de Jorge Amado.