Entrevista publicada na Revista ViverBahia, edição 46, publicada em Janeiro de 1979
aretê não é virtude
Esta entrevista, do jornalista e escritor Ariovaldo Matos com J.U Ribeiro, saiu sem que nada, antes, fosse ordenado. É possível, porem, que certas respostas do romancista contribuam para explicar por que "Sargento Getulio", já traduzido para o inglês e o francês, vá ganhar dentro de alguns meses, edições em espanhol, norueguês, chinês, alemão e outros idiomas, com o aplausos de uma critica internacional que, contudo, até agora, se limita a elogios calorosos.
A questão da virtude foi a primeira a ser tratada no bate-papo com Ubaldo e o leitor merece explicação. Nas edições em português, e já são três, diz o autor: "Nesta história, o Sargento Getulio leva um preso de Paulo Afonso à Barra dos Coqueiros. É uma história de arete." Vamos ao dicionário e encontramos "aretê"como significando virtude. Existe mesmo a aretologia, dita como parte da Ética que estuda as virtudes. "C'est une histoire de vertu", lê-se na edição (Gallinard) francesa. "It is a tale of virtue", na edição americana (da Hougton Mifflin Companany) Por que virtude?
J.U. Ribeiro - Eu não emprego a palavra virtude...
A.M. - É como está, eu li, nas edições em francês e em inglês.
J.U. - Eu vou lhe explicar. Inclusive na edição nacional, eu grafei aretê errado; devia ser areté, se você quiser fazer uma equivalência rigorosa com o acento grego. Dá areté, mas eu achei aretê mais bonito. Isso foi no tempo em que eu era "Paidéia", muito preocupado com o problema da transmissão social da cultura, essas coisas... Aretê ou areté é o nome que designa a virtude do herói grego, uma virtude diferente da virtude judaico-cristã. É uma virtude no sentido muito diverso da nossa, esta geralmente identificada com a candura, a brandura, o estender a outra face. A virtude do herói grego é diferente dessa. Era a virtude do melhor, quer dizer o valor, que é semelhante ao conceito de "vertú" de Maquiavel. Eu tenho a impressão que de até para virtude, como nós entendemos, houve um estagio intermediário que é a "vertú", o valor do herói, o denodo, a dedicação, o ideal acima dele etc. Eu botei aretê mas quando fui traduzir para o inglês...
A.M. - Você mesmo fez a tradução para o inglês?
J.U. - Fiz. Quando fiz a tradução para o inglês aí achei que era dose para elefante botar aretê e ai botei virtude, inclusive para curtir a ambigüidade da coisa com o americano, que tem uma formação protestante, e tal. Aliás, eles comentaram isso e aí foram ao dicionário e pegaram a raiz da palavra virtude que vem de viris, de homem, de virilidade, machismo...
A.M. - Mas, tem essa conotação de machismo?
J.U. - Não, não. Isso não, mas me aproveitei do fato de as palavras virtude e aretê serem as únicas de que dispomos hoje.
A.M. - Você pensou muito em autores gregos, histórias gregas, essas coisas, em função do "Sargento"...?
J.U. - Pensei. Eu já li ficção muito, mas hoje leio mais poesia e leio muito ensaios. E em matéria de ficção ou de uma obra que a gente pode enquadrar no limite inexistente entre poesia e prosa, como por exemplo a "Ilíada", eu dei para ler os mesmo livros, sempre. E já li umas 10 ou 15 vezes a "Ilíada", não sei. E realmente tem alguma coisa a ver, tem. E é intencional, mas eu não pretendi "chupar" a "Ilíada". Pretendi usar um patrimônio da Humanidade. Aí, quem não lê a "ilíada" não saca.
A.M. - Com que propósito?
J.U. - Há o fato de que nós somos herdeiros dos gregos. Nós brasileiros, somos uma espécie esquisita. Nós baianos, principalmente, porque, por uma serie de fatores, ainda não incorporamos a nossa herança negra como devíamos ter incorporado. Ou, não sei. Talvez não seja o caso de estabelecer regras sobre isso, não sei. De qualquer maneira nosso lado europeu é um lado grego. Então, toda a busca pela nossa transcendência, toda a busca do entendimento do papel do ser humano na terra, a finalidade da vida, e outras questões que poderiam até ser transformadas em filosofia de botequim, tudo isso, afinal, os gregos nos trouxeram: o humanismo, enfim. Então, como eu imaginei fazer um livro humanístico apesar de fazê-lo sobre um facínora, um criminoso do interior de Sergipe, a coisa aconteceu. Eu quis mostrar, talvez, não tenho certeza de ter conseguido, que o ser humano é muito vitima, é muito fruto das circunstancias. Como o Sargento é um personagem contraditório. A pessoa lê o romance e gosta do personagem. Ele é um facínora, um monstro, um criminoso, mas o pessoal gosta porque percebe que ele tem virtude, percebe que você poderia estar no lugar dele.
A.M. - Essa simpatia pelo Sargento não decorre do fato dele ter sido traído?
J.U. - Também. Eu imagino que sim. Mas, normalmente, um facínora mereceria ser traído, não é? Mas ele, apesar de ser um facínora, de dever ser traído em nome da moral e dos bons costumes, a pessoa torce a favor dele.
A.M. - E o filme? Você tem tido noticias?
J.U. - Tenho tido boas noticias, de modo geral. Noticias, inclusive de certos equívocos. Algumas pessoas falam de "meu" filme. Ora, eu escrevi o romance e só. Assim, não se trata de "meu" filme. Ele é de Hermano Pena e Flavio Porto. Pessoas das quais gostei muito.
A.M. - Jorge Amado, em geral, não se envolve nas adaptações de filmes a propósito de romances dele. Ele concorda que se faça a adaptação e tal. É esta a sua atitude?
J.U. - É, também é. Porque eu não quero me meter no cinema, não tenho nada a ver, não sei nada de cinema, não é minha transação. Eu não me meto. Nesse filme "Sargento Getulio", eu fiz duas "falas" que me pediram. Eles precisavam de uma costura. Lá na carpintaria cinematográfica deles foram necessárias duas "falas". Como eles não sabiam escrever "sergipês" eu fiz para eles.
A.M. - "Sargento Getulio" é todo em "sergipês"?
J.U. - Todo, todo. Um fenômeno interessante. Um fenômeno que nós podíamos curtir uma conversa de horas é esse da linguagem do "Sargento Getulio". Porque eu não inventei língua nenhuma. Eu vivi aquele negocio e ta lá, é um livro oral, se se pode dizer assim. Não inventei uma única palavra. Pelo contrario, eu busquei a reprodução possível da linguagem oral. Entretanto, houve duas reações representativas desse elitismo ao qual nos temos referidos nesta conversa. A primeira reação é a de quem não está acostumado a uma linguagem não literária. A linguagem literária é a das belas letras. A linguagem de gente que sabe escrever, de gente que tem educação, tem nível, não é essa porcaria que nós falamos no dia-a-dia. E segundo é a falta de habito do brasileiro de ver sua própria linguagem no livro. Eu tive exemplo de fazendeiros e tabaréus que viram aquilo e não gostaram de "Sargento..." porque estavam acostumados a ler coisas bem escritas e não aquele negocio que ele ouve todo o dia lá na fazenda dele.
A.M. - A linguagem usual, a do dia-a-dia, então afastou esse tipo de leitor, é isso?
J.U. - É, afasta. Há um caso de um coronel, pessoa ilustrada, meu amigo, que não entendeu nada. Ele esperava uma historia assim do tipo "era um peão rude, de fazenda. Daqueles que criados na dureza do trabalho do dia-a-dia, impedido ainda de participar da vida da mesma forma que nós outros", e tal e tal, essas coisas. Ele não gostou do "Sargento..."
colonialismo cultural
João Ubaldo Ribeiro já concluiu outro romance "Vila Real". E prepara um livro de contos, alguns publicados em revistas nacionais e estrangeiras, ainda sem titulo. Prefere falar sobre "Vila Real":
- É um romance a respeito do qual alimento algumas duvidas, não sei por que mas alimento. É sempre assim.
A.M. - A propósito de que, qual o tema?
J.U. - É a respeito de posseiros daqui do Nordeste. Um povo de posseiros que é desterrado constantemente e que acaba resolvendo brigar pelo direito de ficar nas terras.
A.M. - Grilagem, essa coisa?
J.U. - É, é. Mas só que nesse caso não é grilagem de latifundiário, é grilagem de uma companhia de mineração internacional. Uma multinacional. Não fica claro porque tudo é visto pela ótica do posseiro, mas é uma multinacional, até porque eles falam uma língua estrangeira. Você sabe que tem por aí, não é, você sabe. Pois é sobre isso.
A.M.- Alguma relação, de algum modo, com o "Sargento Getulio"?
J.U. - Sim, claro. Eu acho que só se escreve sobre a infância. Eu acho a única coisa possível, a ótica da infância, é como se escreve. A não ser que você queira escrever de obrinha. Negocio como "vamos fazer um best-seller aqui, me dê aí uma grana". Neste caso, quando você vira redator e não escritor, é diferente. Mas quando você esta sendo um escritor mesmo, um ficcionista, eu acho que você só escreve sobre a infância, de um forma ou de outra. Como minha infância é uma infância sergipana, eu acho que sempre vou escrever sobre ela. Sergipana ou itaparicana.
A.M. - Vila Real existe, é Bahia, é Sergipe?
J.U. - Não, não existe. Que eu saiba não existe uma Vila Real. Deve existir porque é um nome comum. Deve existir umas !0 "vilas reais", por aí. Mas, a área eu não imaginei nada especifico. Imaginei uma área do Piauí pra cá, até o sertão da Bahia. Não pensei em circunscrever nada.
A.M. - Certamente tem um riozinho no meio da coisa...
J.U. - Ah, tem. Tem rio. Tem vários rios. Tem o rio Japiau, tem o rio Triste-e-Feio. Alias, tem um rio Triste-e-Feio na Chapada Diamantina, mas não foi nele que pensei. Mas tem.
A.M. - Você se considera um lírico?
J.U. Não (rindo), me considero um épico! Não, estou brincando... No fundo é possível que você tenha razão, talvez eu seja um lírico como qualquer brasileiro é, qualquer tocador de violão. Um fenômeno observável na literatura brasileira em geral é que nós não temos realmente romancistas. Temos dois ou três romancistas. Temos, em geral, poetas. Temos elaboradores de palavras. Por exemplo, nós temos um grande romancista brasileiro, grande mesmo, um homem que morreu moço - e a gente pensa que ele é velho - que foi José de Alencar. Era um poeta. Ate hoje você pode verificar que as categorias lógicas européia não dão para entender José de Alencar. Você tenta e não consegue. Fala-se em Chateaubriand, em romantismo, fala-se nisso, naquilo, mas você aí escreva "Verdes mares bravios de minha terra natal" e isso emociona. Não importa se está mal escrita ou bem escrita. Emociona, pronto. Iracema é um mulher inexistente? É, tá certo, é. Ubirajara é um índio que não existe? É, não existe mas me fala na alma de alguma forma.
A.M. - Temos poucos romancistas?
J.U. - É, temos mais poetas. São poucos os ficcionistas. Um Henry Filds, o autor de "Tom Jones", "Moll Flandres", um Dickens, um Balzac, um incrível fazedor de enredos, é difícil de você encontrar no Brasil. Você encontra o fazedor de climas poéticos, até mesmo os mais secos, como Graciliano Ramos. Você veja "Angustia", "Vidas Secas", não são livros de enredos no sentido clássicos na narrativa européia. Não tem aquelas tramas retadas, aquelas coisas assim típicas do romance europeu, não, não tem.
A.M. - Talvez um José Geraldo Vieira...
J.U. - É, ele é. Eu ia falar nele. "A Túnica e os Dados", tal, é. "A Túnica e os Dados" é um romance que tem um enredo, uma transação complicada. Eu me lembro que assombrou minha infância um abscesso que uma personagem tinha, um abscesso na coluna, tal, e tal. "Vila Real" não tem isso. È um romance brasileirozinho. É muito mais para José de Alencar do que para Machado de Assis - e eu sou alencariano.
A.M.- Agora, vamos conversar sobre crítica e críticos. Como é que você vê a coisa?
J.U. - Críticos literários?
A.M. - Eles. Os de arte. Todos.
J.U. - Eu me lembro da frase de Salvador Dali que nós dois já curtimos juntos. Foi quando ele apareceu na tevê. Um sujeito perguntou: "Que é que o senhor acha dos críticos?". Ele respondeu: "Os críticos tem como missão especialíssima equivocar-se em tudo". E de certo modo é verdade, talvez. Eu não dou muita importância aos críticos. Inclusive eu acho que muitos críticos brasileiros são responsáveis pela manutenção da mentalidade colonizada e subordinada, elitista, na intelectualidade brasileira. O intelectual brasileiro metido a "esquerdinha", e porque é metido na verdade não é, se esquece de uma coisa básica: a "práxis" é o que define uma atitude de vida. É muito fácil você ficar professando determinadas posições popularescas e escrever de uma forma que acaba por levar o povo a detestar-se, a educar-se, se se pode dizer assim, contra si mesmo. Desde a sua aparência até as coisas que gosta, a comida, etc. Em fim, tudo.
A.M. - Você concorda, porem, com o fato de que a critica e os críticos já exerceram um papel positivo, na pratica?
J.U. - Ah, sim, claro que sim. Acho mesmo que temos responsáveis ignorados pela consciência nacional, heróis da consciência nacional, como Mario de Andrade. Temos ainda homens como José Veríssimo, João Ribeiro, como Silvio Romero, Tristão de Athaíde, mais recentemente, Álvaro Lins, homens responsáveis pela preservação de uma consciência nacional, ainda que de uma forma de certo modo vinculada à tradição lusitana, européia. Homens como Gilberto Freyre, a quem se pode fazer restrições, mas homens que são responsáveis dessa consciência brasileira que muita critica rasa, irresponsável, estruturalista, babaca, não identifica, não reconhece. Muitas vezes esses caras, as vezes uns cabeludos, chegam do exterior. É, de vez em quando chegam aqui uns catequistas, da Europa, de outros lugares. Claro que não estou dando uma de colonialista em cima do europeu, querendo reverter o relacionamento. Não quero ir lá converter o europeu. Mas, chega de eles chamarem os crioulos africanos e nós de selvagens quando eles é que atuam como selvagens, dizimam os crioulos, fazem guerras de 15 em 15 anos - e continuam chamando a gente de selvagens. Ora, chega! Nós selvagens, e eles lá com um Stálin de 15 em 15 anos, um Hitler...
A.M. - O que que esse pessoal do exterior mais assinala, assim, de representativo, no "Sargento Getúlio"? A critica, por exemplo...
J.U. - Na verdade, para mim seria até interessante assinalar alguma percuciência na critica americana que elogiou de forma unânime o meu livro. Eu gostaria de dizer que são críticos inteligentes e tidos por informados. Inteligentes eles são, até por terem atingido as posições que atingiram. Mas são desinformados. O livro, nos Estados Unidos, foi muito bem recebido por razões de modo geral que não tem a ver com nossa realidade. O problema é que no Brasil é uma cultura que não se afirmou, que não existe em relação ao mundo. Lá fora se tem uma noção extremamente vaga sobre o que existe aqui no Brasil. São aplicados à analise da realidade brasileira estereótipos e bobagens variadas. Isso em tudo, inclusive na literatura. Eles não dizem que é um livro tecnicamente bem executado, e tal, e tem um apelo humano que eles não entendem, mas apenas sentem. Então, eles tentam racionalizar isso de varias formas. Resultado é que escreveram muita besteira. Poucas vezes foi escrita tanta bobagem sobre um livro em função de um contexto cultural exterior quanto se escreveu sobre o "Sargento Getúlio" nos Estados Unidos.
A.M. - E na França?
J.U. - Na França eu só li um artigo que saiu no "Le Monde". Um comentário elogioso, tal, mas também de quem não está entendendo nada. É um negocio na base do "la bas". O pessoal fica aplicando categoria européia de pensamento... Porque, de fato, sobre o Brasil o europeu não sabe nada. Quer dizer, sabe as coisas que são boas para o europeu. Então, eles estão olhando para o meu livro como um produto interessante vindo de um colonizado. Inclusive a articulista do "Le Monde" fala que eu uso um estilo europeu de narração. Ora, que presunção dessa francesa! Ora, mas é natural. Eles pensam que são o centro do mundo. Que os outros comem comida podre e tal.
A.M - Vejamos mais a critica no Brasil. Você concorda em que houve um tempo em que a critica exerceu um papel importante, no Brasil. E que, não tão de repente, mas aos poucos, ela foi assumindo um papel...
J.U. - De distanciamento entre leitor e o escritor? Concordo.
A.M. - Em que medida a Universidade participa disso? Você já foi professor de Ciências Políticas na Universidade, deve saber melhor do que nós.
J.U. - Participa na medida em que a Universidade também é colonizada. Porque há muito tempo - e nós ainda não percebemos isso direito - à guisa de atualização cultural, de atualização tecnológica, tal, e eu sou um exemplo vivo disso, nossos programas de aperfeiçoamento universitário são conduzidos em moldes estrangeiros, a exemplo do que acontece agora com os programas de mestrado, de PhD, de doutorado, em bases estrangeiras. Então temos toda essa gente fora daqui se formando assim e daqui importamos padrões do exterior. Aí você pergunta: "Você é contra que se utilizem as conquistas obtidas lá fora?" e respondo claro que não, não sou débil mental. Mas, no momento em que você não dispõe de um suporte cultural que dê resistência à sua própria identidade, então você vai sempre importar algo de postiço, artificial, que é o que se vê hoje em todos os setores da vida brasileira.
A.M. - Os exemplos nacionais disso, dessa tecnoburocracia, são conhecidos. Dê um exemplo exterior. De Brasileiro assim no exterior.
J.U. - Temos um critico da maior dimensão, do maior valor no sentido acadêmico, e acadêmico porque no sentido utilitário ele não tem valor nenhum, Wilson Martins. Ele não tem passado em brancas nuvens, é um homem com quem eu não posso discutir uma porção de coisas. Agora, posso discutir todas porque ele não sabe de nada do que tem aqui. Ele é americano. Ele mora lá nos Estados Unidos algum tempo e virou americano. Sabe como quê, mas é americano. Então, ele não sabe nada a meu respeito. E fica dizendo besteira. Adotou, inclusive, uma atitude meio "passé"... É engraçado como a pequena burguesia e o consumidor são vitimas de si mesmos... Tentaram transformar Jorge Amado, que é um patrimônio da cultura brasileira, num objeto de consumo, "consumiram" Jorge Amado, passaram um ano inteiro - revistas paulistas e publicações como "Pasquim", você sabe disso - a esculhambar Jorge Amado pelas razões mais mesquinhas e equivocadas e agora já se voltou de novo, Jorge Amado está voltando de novo porque o que permanece tem mesmo de permanecer. E Wilson Martins que está fora daqui, assim como José Guilherme Merquior, que está na Europa, ficam a aplicar padrõezinhos engraçadinhos e a dizer completas tolices. Não sabem o que está acontecendo, são incapazes de avaliar, inclusive, que tipo de literatura está surgindo no Brasil.
A.M. - Você, como autor, seria um exemplo?
J.U. - Eu, inclusive, sou humilde para dizer: eu posso estar até fora da corrente, mas eu não sou critico literário, não tenho obrigação de saber. Estou escrevendo meus livrinhos. Eles é que teriam ou tem. Mas, um está ensinando na América, outro na Europa, a dizer bobagens, a fazer burrices, a incrementar todo esse negocio de "criticar" que no fundo é raiva estruturalista contra a literatura brasileira, a tratá-la como um objeto estranho que não tem nada a ver com suas vísceras. Enfim, a aplicação de categorias que não tem nada a ver com nossa realidade.
A.M. - Me diga uma coisa: você tem participação política...
J.U. - Restrita, sim, tenho. Escrevo umas coisas... Eu tenho uma preocupação política, ao invés de participação.
A.M. - Preocupação, certo. Isso atrapalha sua literatura, de algum modo?
J.U. - Não, pelo contrario. Porque eu acho que nenhuma pessoa tem o direito de se alhear do processo que afeta seu destino. Do contrário não tem o direito de se queixar. Então, é dever primordial, é tarefa básica de todo cidadão participar da vida política, ainda mais num contexto subdesenvolvido, no qual nós somos privilegiados. Queiramos ou não queiramos, queixemo-nos ou não nos queixemos da vida nós estamos muito melhor do que a maioria das pessoas aqui. Estamos tomando um uisquinho, comendo, vamos sair para jantar e tal, então eu não tenho direito - e acho que ninguém tem - de me alhear. Claro que eu defendo o direito do sujeito escrever sobre qualquer coisa. É outra coisa. Mas para que você possa escrever sobre borboletas, lírios e não sei-mais-o-quê é preciso que alguém, antes, tenha estabelecido a garantia desse direito seu. Do contrario você não escreve sobre borboleta não, você escreve sobre a mãe de Hitler e coisa e tal.
A.M. - Pensar politicamente, escrever a sério, etc., nada disso impede você, ou qualquer outro, de escrever apenas para divertir. Ou você não acha?
J.U. - Sim, claro, acho. Inclusive há mal-entendidos quanto a divertir porque no Brasil o escritor, o dramaturgo, enfim, os homens que fazem arte, têm uma certa idiossincrasia contra se divertir. Mas fazem bobagem, estão por fora, na medida que a Humanidade precisa divertir-se. Afinal de contas que merda é que distingue a humanidade do resto? Divertir não é necessariamente uma palavra gratuita. Você pode colocar a coisa numa formulação primaria, o divertir educado, essa coisa, mas no fundo há um pouco disso também. Porque os jogos da Humanidade, as coisas que a Humanidade tem feito, coisas que se disfarçam sob muitas capas, são a própria construção da especificidade da Humanidade, me parece. Afinal, nós não somos bichos.
Permanecem uns frescos a repetir tolice segundo a qual jornalismo e literatura são incompatíveis. No bate-papo de J.U. Ribeiro com Ariovaldo Matos essa questão foi também abordada. Como se segue:
J.U. - Começar a escrever, como?
A.M. - Com quantos anos você começou a publicar coisas?
J.U. - Se você chama publicar, editar, com 17 anos. Eu tinha 17 anos e foi o finado Flavio Costa quem me falou sobre se eu não teria um conto para o suplemento literário do "Jornal da Bahia", há exatamente 20 anos.
A.M. Não me lembro desse conto.
J.U. - Saiu. Chamava-se "Lugar e Circunstância", ilustrado por Lauzir e diagramada por Misael Peixoto. Eu me lembro que o conto ia sair num domingo e não saiu. Eu acordei às 5 horas da manhã, fiquei esperando a banca abrir, o sujeito me entregou o jornal, eu paguei e abri e não tinha o conto. Eu passei uma semana atroz, mas o conto saiu.
A.M. - O jornalismo empatou você em literatura?
J.U. - Não, não. Ajudou muito, ajudou muito. Claro, se você não for uma pessoa de estrutura excepcional tem a tendência a fazer mal uma das duas coisas. Porque você ou se obceca com seu lado jornalístico ou com seu lado escritor e tende a negligenciar um dos dois lados, principalmente se você tem um projeto qualquer, importante, ligado a uns dos dois lados. Mas, é muito melhor você ser jornalista e escritor do que você ser mestre-de-obra e escritor. Eu tenho certeza de que meu treino em editorial, que é um negócio difícil, você tem que vestir a roupa de terceiros para assumir um ar que não é seu, tem que se submeter a uma serie de restrições de estilo, foi um treino muito útil. É um treino de redação de primeira qualidade.
A.M. - na medida que o jornalismo abre o mundo para o profissional... Conhecer gentes, realidades...
J.U. - Claro, claro, claro! Eu sou por natureza, embora não pareça, uma pessoa voltada... Quero dizer, sou uma pessoa de poucos amigos, me dou com pouca gente, reconheço isso. Quando eu voltei à redação, depois de muito tempo fora da redação, voltei relutante, me foi muito útil. Inclusive, dá uma certa lição de humanidade, de relatividade das coisas, cuja noção você perde na medida que se afasta da vida de um jornal, qualquer jornal, onde você vive todo tipo de gente, de situações, todo o tipo de deformação profissional, todo tipo de vaidades. Dentro de uma redação você tem uma visão muito clara da humanidade e é bom, é didático, eu acho, para um escritor.